domingo, 29 de março de 2009

Assim nascia do papel o poema...


Quantas vezes partira em direcção à cidade, sem saber o que buscava. Nessas alturas os sonhos à custa de tão amordaçados pressionavam os baús da alma corroendo ferragens e cadeados. Quase de olhos fechados vogava por avenidas, lugares, jardins envelhecidos…Tentava adivinhar nas manchas indistintas dos rostos, qual dentre eles se iluminaria, qual lhe diria a presença, aquela que um dia recusara, mas nunca, nunca esquecia. Assim nascia do papel o poema quando no cansaço da solidão se agarrava à cor de uns cabelos ou ao ângulo de um rosto. Estava ali, à distância de algumas passadas, o passado vivo e quente que lhe dizia que nada do que é verdadeiro morre. De súbito o “presente” encaixava-se na tela antiga salpicada a estrelas e a reflexos de azul, reacendendo naquele seu corpo um maravilhoso ardor. E agora? Que rumo era aquele que a sua existência buscava? O sonho de um tempo nunca acontecido? A fugaz alegria que o tocara quando, quase menino, sentira a naturalidade com que rios de palavras circulavam de uma para a outra margem? Quando a olhava o passo acelarava-se-lhe ao ritmo do bater desordenado do coração e no rubor de tempos idos sonhava tocar-lhe o ombro, removendo nesse preciso instante todas as muralhas que tempo e medo tinham construído. Seria ela? Sentia-se tomado por uma tão violenta imprudência que quase esquecia como o tempo, esse escultor, fizera entretanto das suas. Aquela mais não era que o reflexo em espelho baço do sonho que só ganhara existência com a chegada do silêncio. Era então que palavras saltavam inevitáveis para a folha verde-seca, cor desbotada do tempo, cor irmã desses tantos papeis amarelecidos e acarinhados. Ela habitava a cidade cinzenta que tivera de tomar como sua, os espaços desconhecidos povoados de aridez e de vazio, os longínquos lugares intactos e vigilantes. Quando as palavras se uniam o poema nascia para lhe dizer a demanda que não conseguira apagar. Ela estava ali viva e distante, palpável e inacessível, jogando às escondidas com o tempo. Desaparecia quase por completo quando as rotinas preenchiam e destruíam os dias, quando o cheiro a morte e a dor empapou os espaços, quando se dizia de si para si que nunca lhe seria dado tocar-lhe, temendo nesse preciso instante pulverizar a miragem. Ela reacendia-se espontâneamente no inusitado instante desse seu presente que nunca desistira de esperar o encontro que se lhe partira tão cedo.(cont)
(Folha Lisa-Addiragram-Joaquim ou uma estória mal contada)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Ela era o mar em que temera afundar-se...



Chegara a hora de reencontrar a casa. A cesta cheia de cavacas, a lenha bastante e seca, constituíam a imediata preocupação de Joaquim. Tinha de atear o fogo, recriando um envelope mágico que ao envolvê-lo lhe trouxesse a ilusão de presença ( era pena, pensava, estar assim por ali, sozinho, sem poder estender o cobertor macio por cima de outros joelhos que não só os seus)…Esta imagem brotara do crepitar das pinhas, quando a conversa à volta de Bachelard se lhe impusera.
Sempre a colocara enclausurada no inacessível, como paisagem de um país longínquo que apenas se conhece dos cartazes das agências de viagens. Era assim que tinha de ser. Ela, sempre ela ao longe. Como libertar-se, de vez, desta prisão que lhe forrara a alma e um dia lhe suspendera o tempo? Ela era o mar em que temera afundar-se, o azul brilhante e luminoso que o cegara, a pele fresca e densa que aflorara por instantes, mas a imperfeição também sua que não tolerava.
Alguém dissera um dia que o único amor que existe é o amor impossível. Estava tão certo desta verdade que vivia de rebuscar baús, caixas, esquifes, como quem procura conservar o longínquo raio de luz paralisando-o. Próximo da lareira deixava-se escorregar no tempo das tardes lendo folhas já desbotadas que guardavam cheiros, traços de mãos, restos de areia, conchas imaginadas…Saltava, quase sem dar por isso, de plataforma em plataforma, visitando ignotos lugares gravados em memórias só acordadas nesse seu corpo, cofre de desmedidos segredos. Madeiras antigas, miados misturados com choros calados de menino e a escassez tão radicalmente gravada que determinara todos os fundamentos da sua existência.
Vezes sem conta se perguntara que fazer desses achados. Acumulá -los tal coleccionador que se delicia contemplando prateleiras meticulosamente arrumadas e poeirentas ou ouvi-los como búzios que transportam sonhos e acordam esperanças?
Ao seguir a primeira rota sempre tinha mergulhado nessa espiral que penetrando na direcção do centro o aprisionara num trabalho infindável de reanimação de fósseis que o tempo, de caminho, se encarregara de modificar.
A segunda, conduzia-o ao maravilhoso e assustador imponderável cuja percussão telúrica tanto o atraía como aterrava. Empreender esta segunda viagem era também trocar as voltas ao destino, desdizer a impossibilidade, única morada que sempre conhecera.(cont)

(Folha Lisa- Addiragam - Joaquim ou uma estória mal contada)

sábado, 21 de março de 2009

Partir para os campos sem hora e sem tempo...


Faltavam já poucos metros para que a pequena casa se abrisse à sua chegada e, de novo, um aroma mais forte invadia-o, deixando todo o seu corpo a vibrar. O que era aquilo interrogava-se. Já havia tantos anos que a mandara calar, que lhe ordenara que lhe obedecesse e agora, mesmo a poucos instantes de pegar na chave, sentia na boca, na alma, o travo daquela tangerina. Como era possível dizer àquela parte de si que recuasse, desaparecesse, se calasse de uma vez por todas(?) Só via uma solução. A única que conhecia. Partir para os campos sem hora e sem tempo e deixar-se por aí ficar, abrindo largos roços na terra, para semear, semear outra vez, semear de novo. Então todo o cheiro da terra o tomaria por inteiro. Deixava-se ficar dias e dias a fio observando o rebentar do faval, os feijoeiros que lançavam os braços pelas canas acima, as alfaces de um verde tão clarinho e luminoso que lhe lembravam os olhos fluorescentes daquele cão do quadro de infância. Esquecia-se de tudo ( dizia de si para si) entretendo-se a contar quantas plantas tinham mesmo ido avante, quantas os caracóis engalfinhados acabariam por devorar. Admirava também a perfeição com que traçara o alinhamento das plantações que, observadas ora do cimo ora do topo, não pareciam ter sofrido qualquer oscilação. E naquele tempo sem tempo julgava ter recriado a existência como se fosse ele mesmo o Fundador.
Quando finalmente reentrava em casa tudo voltara de novo aos seus lugares. A disciplina reinstalara-se e ela, aquela alma desgovernada, obedecera de vez ( julgava) à voz do dono.
A manhã já ia alta. Era hora de dar um salto à loja onde se abastecia das necessidades mais urgentes e encostado ao balcão ouvia as novidades dos que por ali cirandavam. Gostava de se misturar com os da terra, de mergulhar nos modos , trejeitos, recolhendo hábitos, palavras, segredos, como quem faz o levantamento e inventário dos achados. Tudo registava naquele caderno que era parte integrante da sua sacola. O conhecimento feito de uma observação quase laboratorial dava-lhe a sensação de domínio, de segredo só por si descoberto.
Por vezes esquecia-se da hora do almoço deixando-se embalar pela música das estórias que os que entravam iam discorrendo. Maravilhava-se com sonoridades, ângulos ou arestas, formas redondas que descobria em cada palavra. A seguir mergulhava nas estorias ouvidas que lhe permitiam reconhecer-se sem aquela dor. A feroz guerra que se derramara por todas as famílias podia ser olhada, agora, como se não fosse sua. Escondia-se ora nos recantos ora nas pausas dos historiadores locais, capturando sensações, cheiros, paisagens agónicas que registava como fotogramas. O frio ou o calor insanos rodeavam-no então. Saberia dizer donde partiam? (Cont)

quarta-feira, 18 de março de 2009

E lá saía ele, sempre em silêncio...


(Ladmore)
Gostava daquele ritual da preparação das injecções. Todos os da casa o esperavam como se preparassem para assistir a um ofício litúrgico. Traziam-lhe a correr o frasco de álcool e a mesa de pedra estava rigorosamente livre e limpa para os preparativos. Com gestos eficientes e lestos desinfectava as mãos, incendiava o algodão com aquele isqueiro que guardava dos tempos em que acendia cigarros uns nos outros. Batia na ampola com as pontas dos dedos e lá vinha a seguir aquele clic do estalar do vidro. Completamente concentrado aspirava o líquido e perguntava, quase sem olhar, de que lado ia ser hoje. Lá vinham as palmadinhas nas carnes macias e, finalmente, a picada ( não vai doer menina, foram muitas as que tive de dar lá pelas Áfricas e ali sim, as mais das vezes não havia cama, não havia catre, era sempre de pé, sempre a andar e não houve uma que se me tivesse infectado). E lá saía ele, sempre em silêncio, todo orgulhoso da eficiência com que conduzira o ritual, recebendo os parabéns do pai da pequena. Com Joaquim as injecções nunca doíam. Até parecia que a agulha não chegara sequer a pousar. Quando a porta se fechava os da casa ficavam a cavaquear ( onde fora aquele Dr. Joaquim aprender aqueles modos? Que segredos teimava em aferrolhar?) E à volta do braseiro saltavam as mais surpreendentes estórias a propósito daquele homem que tratava por tu os bichos e que em relação às gentes sempre preferia resguardar-se.
A alva envolvera subtilmente todos aqueles lugares e Joaquim encetava o caminho do regresso. Corpo seco e encurvado como o de um vime, parecia dançar quando visto de longe por entre arbustos que mordiam o carreiro. Quase se lhe adivinhava o sorriso, quando ninguém o conseguia verdadeiramente ver. Era ele só, a terra e os seus sonhos. A memória assaltava-o de novo quando laranjas espalhadas pelo chão se lhe colavam à retina. Distraído de si sentia-lhes o cheiro. Divagava aqueles seus dedos pela superfície lisa e lustrosa. Dedos carregados de memórias que desenhavam no espaço húmido contornos e brilhos. Raramente se deixava tomar pelo sonho. Cada dia era desenhado com a precisão do compasso e do esquadro, não resgatando outros tempos para além dos previamente determinados.
Além do cajado que um dia ele mesmo esculpira de um tronco largo, seco e compacto, sustinha-se também nessa rigidez implacável que sempre o acompanhara e que costumava situar nesses tempos de guerra. Mesmo que os contornos das imagens se tornassem cada vez mais fortes, que as saudades o cobrissem todo por dentro, não se dava a si mesmo a esses luxos. Prendia-se àquela dureza como a uma prótese que teria de tolerar, mas que lhe era impossível dispensar. Abrigava-se por detrás desse muro mais espesso e impenetrável que os que dividiam as courelas e nos estratos delineados pelos minérios lia gravadas as memórias tortuosas da sua existência.(cont.)

(Folha Lisa-Addiragram-Joaquim ou uma estória mal contada)

sexta-feira, 13 de março de 2009

Partia em direcção às fruteiras...


Partia depois em direcção às fruteiras, colhendo alguma maçã tardia, olhando cuidadosamente os ramos já pelados de folhas, imaginando por onde os cortaria na hora da poda.
Nas suas deambulações passava pelos vizinhos do lugar que sempre ali tinham vivido e que o olhavam com alguma benevolência e surpresa ( «
esta gente das cidades é mesmo esquisita! Então o raio do homem deixou a vida da cidade e todos os seus pertences para aqui se vir enfiar?! Ele há cada um! Nós que só pensamos em deixar esta vida de lesma e o tipo com estudos e tudo, deu-lhe p'rá agricultura!») essa mesma agricultura que os deixara cada vez mais amarrados ao pão de cada dia, trouxera para ali um intruso que teimava em dizer que aquilo do campo era coisa bonita. («Bonita qual quê! Não se vê que o gajo não andou por aí descalço, nem sentiu os pés gretados, não cavou à custa de litradas de tinto e de pão duro já tocado pelos bolores»). Mas Joaquim ao escolher aquele lugar ou ao deixar-se escolher por ele, conseguira ser adoptado. Quantas vezes lhe pediam que trouxesse sementes do mercado ou produtos que combatiam as moléstias. Lá se metia então no velho Peugeot, uma espécie de segunda casa, habitado pelas alfaias mais variadas, vindas dos tempos em que se dedicara a escavações mais eruditas. Quase sempre em segunda, dirigia-se ao mercado ou, mais raramente, à cidade que abandonara desde que decidira partir para a reforma.
Os remédios para o míldio da vinha ou para o pedrado das fruteiras diluía-os ele nas exactas proporções. E de moléstias percebia ele. As da alma sempre caminharam a par e par com ele e algumas do corpo também, que aprendera a conhecer nos tempos de miliciano. Quando tinha um garrote para fazer, uma injecção para dar, um abcesso para purgar, deixava-se absorver totalmente naquela luta, pensando que destas vez as feridas ficavam mesmo saradas. Aplicava-se todo, tocando com doçura os corpos que pediam os seus cuidados. Ali na terra, de vez em quando, também o chamavam. E Joaquim acudia sempre, mesmo quando cada acto, cada gesto o transportavam a esse maldito passado de guerras loucas e inexplicáveis. (cont.)


(Addiragram- Folha Lisa- Joaquim ou uma estória mal contada )

segunda-feira, 9 de março de 2009

Continuava a sonhar com os bichos...

 
A réstia de luz despedia-se do vale. Joaquim decidira aproveitar os últimos reflexos que lambiam a soleira e sentado no mocho colocado àquela porta há um ror de tempo, pousava os olhos cansados mas brilhantes nos limites da encosta.
Dali até à capital era sempre a direito na estrada do coração.
Os dias perdiam aquele tempo desmedido e agora que o Outono permitia aquela multiplicidade de cores, dos ocres aos dourados, que a beleza verdadeiramente parecia ter vindo para ficar, ele fazia daquelas frestas semicerradas colocadas sobre o perfil da serra, os barcos que o conduziam só ele sabia onde.
Ninguém podia pedir-lhe contas, ninguém lhe podia falar em traição...Ele sentia-se senhor daquele horizonte contínuo que se estendia como um tapete e em que se deixava escorregar, como os garotos nas dunas, até terras que abrigava dentro de si.
O dia fora intenso para aqueles oitenta anos. Acordava agora, rigorosamente, pelas cinco da manhã. Os pesadelos, que o tinham atingido no corpo e na alma, tinham deixado de o visitar. Continuava a sonhar com os bichos, aqueles seus bichinhos mansos, que riam como crianças e lembravam quadros de Chagall.
Ainda a manhã se encontrava guardada do lado de trás do monte e já cirandava pela casa preparando o café de cevada e a costumeira fatia de pão. Como era hábito dizer, o apetite só vinha ao fim de umas boas horas na companhia da velha enxada. Aí sim, ficava estrazanado e a fome era mesmo a valer.
Lá em casa nunca perceberam como conseguia viver assim, sem aquele gosto pelos sabores, pelos cheiros, mais parecendo apenas governado pela máquina biológica.
Saía ainda sem luz, sempre pelo mesmo carreiro que o levava à horta, todos os dias, todos os anos, como se tivesse ganho raízes naquele lugar.
O frio entrara já pelo Outono adentro e era preciso ver se as geadas começavam a crestar as novas sementeiras, se as pragas atingiam aqueles pequenos seres que teimava em fazer nascer.
Diziam-lhe tantas vezes ( o ti Jaquim devia pensar em deixar essas artes; isso está bom p'rós mais novos!).As costas, tal engrenagens mal oleadas, estalavam a cada golpe de enxada, mas o que lhe pediam era o impossível. Sachadas as ervas daninhas, era a hora de puxar a água do poço deixando-a entornar nos regueiros. Apoiado na enxada olhava o deslizar brilhante daqueles fios de prata e os olhos rasavam-se-lhe também de água. De novo as memórias que lhe atulhavam os sentidos e que reencontrava naquele instante quase religioso de encontro com os elementos. (Continua)

(Addiragram- Folha Lisa- Joaquim ou uma estória mal contada )