quarta-feira, 1 de abril de 2009

O abalo da emoção restituia-lhe, pouco a pouco, o sentido...

    

                                          (Noronha da Costa)

Mas naquele fim de tarde, mais do que nunca, deixara-se envolver no calor dos sonhos e do crepitar das pinhas, tombando num espaço que se dilatara das recordações remotas a este presente que parecia só conseguir pulsar, mecânicamente, ao som do tic-tac do relógio antigo.
O brusco telefone trespassou o silêncio da casa. Vezes sem conta o olhara como uma espécie de cadáver que ainda não se atrevera a inumar, mas que perdia, diariamente, as últimas potenciais possibilidades.
Dos longes, pelos natais, apareciam somente os filhos que de visitas sempre mais súbitas e rápidas lhe diziam:
- Pai, passo por aí amanhã.
- Pai, queria que olhasse os cachopos.
- Pai, a Mariana tem mesmo o castanho avelã dos teus olhos...Vais gostar de a ver...
As vozes que anunciavam a chegada traziam a Joaquim uma excitação quase insuportável.
Se a ideia do imenso e infinito abraço lhe trazia ao rosto o calor que se unia ao brilho dos olhos e à alegria da criança; a raiva, o pavor do encontro gorado, levavam-no a imaginar trancar-se todo por dentro, escondendo-se nos campos seus amigos ou cavando um imenso abrigo mesmo junto ao do seu deus.
E agora, quem seria? Levantara-se quase em desequilíbrio, olhando do alto aquele som estridente que assimilara à dor cortante de um tiro. Contemplando a linha do tempo, recordou os telefonemas que fizera, instantes em que transpusera aquela me
mbrana fina e difusa, atrevendo-se a tocar-lhe ao de leve.
A última vez fora há quase uma vida, mas voz e palavras tinham deixado incisões na pele da alma. Gostava de pensar que ela não o esquecera, de se imaginar envolvido por aquele corpo denso e macio que ainda lhe fazia sonhar o desejo. Gostava de sentir o desabar da “loucura”.
A dor intolerável levava-o a olhar o telefone sem conseguir dar o passo decisivo. Quase o odiava pela angústia que tomara de assalto todo aquele seu corpo. O não-acontecido confundia-se e misturava-se com a necessidade urgente de saber dela ( que raio de cabeça a dele que não se cansava de imaginar falar-lhe mais uma vez…Podiam vir dar-lhe a notícia, aquela cujo nome sempre evitara pronunciar..)
No recanto dos segredos o tempo parara. Podiam caminhar lado a lado, ambos sentindo o intervalo que nenhum se atrevia a percorrer, como um potente iman revertido. Cheiros de eucalipto e pinheiro misturavam-se à inviável frescura da pele. Se a imaginava caminhando na sua direcção via-se procurando o rápido abrigo. Ela era também a sereia que o conduziria ao naufrágio. Quanto mais lhe sentia a força mais se atemorizava com a possibilidade de poder acreditar. Ninguém o apanharia, menos ainda uma mulher. A ferida por sarar abrira um rasgão na sua existência ardendo a cada possibilidade de encontro. Se abrandasse a guarda das muralhas temia ficar como um errante sem porta. O lugar que o recebera oferecia-lhe a regularidade da certeza onde rotinas se diluíam na alteridade cíclica das estações, mas a estridente campainha não deixara de perfurar o silêncio da tarde ( quantas vezes a ouvira como parte integrante da história antiga, deixando-a tocar na casa desabitada). Desta vez era diferente, sem saber donde lhe vinha a certeza. Um murmúrio. Um breve murmúrio, como se ouvisse o pronunciar do seu nome. Foi então que, em câmara lenta, agarrou o auscultador, no preciso momento em que o medo, que sempre ocupara o espaço da vida, lhe suspendeu uma vez mais o movimento.
No ar giraram imperceptíveis e escassas palavras que logo se perderam da raiz, seguidas do desligar seco do telefone.
Vestiu-se de imediato o corpo de Joaquim de uma raiva surda, como se o sangue o tivesse por completo abandonado. O tempo parara uma outra vez e a noite que desceu sobre ele e a casa, cobriu-os de um negro fundo e compacto, criando-se assim o puro lugar da ausência.
Não sabia como aquilo acontecera, que lei obscura o governara, agora que os filhos estavam criados, que se sentia mais e mais só, que esperava ser capaz de soltar palavras e gestos sempre amordaçados.
Deixara-se cair, vestido sobre a cama, sem permitir sequer que a luz o visse e, aconchegando-se no canto obscuro daquele coração desconhecido de si mesmo, deu-se, uma segunda vez, a lágrimas que julgara já por completo impossíveis. Sentia o pulsar das horas nos ouvidos num ritmo síncrono e sempre idêntico. Finalmente soluçava sem disciplina nem ordem, vertendo, de uma só vez, a dor toda da sua existência. O abalo da emoção que tão raramente lhe fora dado viver, restituía-lhe pouco a pouco o sentido, trazendo-lhe numa sequência contínua de sonhos a unidade perdida.

(este é um dos fins possíveis...Outros poderão ser escritos por quem a isso se dispuser)

(Folha Lisa- Addiragram- Joaquim ou uma estória mal contada)

4 comentários:

  1. São tantas vezes estas memórias que protelam a vida além da vida, conferindo-lhe sentido quando tudo ao redor, filhos inclusive, se ausentam a tempo incerto...

    Como é que nunca tinha lido estes trabalhos?
    Tomarei a liberdade de a linkar, se me permite

    Cordial abraço
    Mel

    ResponderEliminar
  2. As palavras são dum balancear muito comovente.
    Fizeste-me parar no tempo enquanto absorvia os sentimentos que emanam do texto.
    Lindo!
    P.S. Como te posso seguir? Não tens essa opção na barra superior.

    ResponderEliminar
  3. Porque não publica fotografias no lugar deste aberrante sinal?
    Já pensou publicar as suas no lugar das dos grandes (ou pequenos fotógrafos...?)
    Li num dos seus Blogues que tinham desaparecido algumas, foi neste?
    A mim desapareceram há tempo comentários numa mensagem, quatro meses depois voltaram a colocar no lugar.
    Publique as suas que certamente são mais valiosas para si do que as de grandes fotógrafos que muitas vezes estão sujeitas a direitos de autor.
    A Internet é para brincar e nada para levar a sério. O sério aqui pode ser perigoso.
    Boa semana.

    ResponderEliminar